quarta-feira, 26 de maio de 2010

Latécoère – Aéropostale – Air France

Uma epopéia da aviação comercial
                                                                                    
                                                                                      © 2010 Marcio Rovere Sandoval


Florianópolis, 14 de janeiro de 1925. Missão de reconhecimento da Latécoère da rota Rio de Janeiro-Buenos Aires. Na foto temos: Roig, sentado na frente, Vachet e Hamm. O avião é um Bréguet 14, biplano utilizado durante a 1ª Guerra Mundial (in, FLEURY, Jean Gerard. L ́Atlantique Sud de L ́Aéropostale à Concorde. Editions Denoël, 1974, p. 32).

Próximo do término da 1ª Guerra Mundial um industrial de Toulouse, Pierre Georges Latécoère, seduzido pelo progresso da aviação, decide consagrar suas atividades à aeronáutica. Já durante a Guerra ele havia convertido sua fábrica de vagões ferroviários em fábrica de aviões.
Ele contrata pilotos, que haviam participado da Guerra, com a intenção de criar uma linha aérea entre a França e a América do Sul. Ele apresenta seus planos ao Governo francês que trata a proposta com ceticismo.
Passando a ação, em 25 de dezembro de 1918, tenta realizar um vôo experimental entre Toulouse e Barcelona com um avião Salmson, apesar de sua pouca autonomia e de sua pequena capacidade de carga. Inicialmente, pretendia-se transportar apenas a correspondência.
O avião decolou de um terreno em Montaudran sobre o olhar de outros pilotos que conheciam os perigos do percurso, notadamente os Pirineus. O avião chegou neste mesmo dia a Barcelona e depois retornou a Toulouse com sucesso.
Pierre Latécoère decide abrir a linha e envia um emissário para negociar com o Governo espanhol a permissão de passagem sobre seu território e o estabelecimento de campos de pouso.
Em 25 de fevereiro de 1919, com dois aviões Salmson, os pilotos decolam em direção a Barcelona, um deles atinge a cidade sem incidentes, depois parte em direção a Alicante. Nas proximidades desta cidade eles percebem que o campo de aterrissagem era demasiadamente pequeno. A questão é que eles haviam telegrafado às autoridades municipais para desobstruir 600 metros de um platô, eles compreenderam 600 metros quadrados. O avião ultrapassa os limites da ‘‘pista’’, bate nas pedras e espedaça o trem de pouso. O piloto com o nariz ensangüentado desce do avião e recebe as boas vindas das autoridades e é aclamado pela multidão. Em seguida pede ajuda para liberar o terreno das pedras para que o outro avião conheça melhor sorte.
Tempo eles teriam o bastante eis que o outro piloto, míope, havia perdido os óculos numa turbulência e havia passado por Barcelona sem vê-la e, ficando sem combustível, teve que aterrissar em uma praia perto de Tortosa. Depois de conseguir reabastecer o avião chega a Alicante, mas, apesar da pista ter sido desobstruída, ele a ultrapassa e bate contra os rochedos. Neste segundo avião encontrava-se Pierre Latécoère, que juntamente com o piloto saem praticamente ilesos.
Mesmo com estes incidentes o otimismo persiste no estabelecimento da linha.
A etapa seguinte era atingir Rabat (Marrocos), o que se efetiva em março de 1919. O Marechal Lyautey ficou impressionado com a façanha e encorajou o estabelecimento de um contrato com o correio local para o transporte da correspondência.
Vejamos a descrição desta aventura: Quinze dias após os incidentes meio dramáticos, meio cômicos do primeiro vôo em direção à Alicante, o obstinado industrial parte com o piloto Lemaître de Toulouse, atravessa a Espanha e após ter abastecido em Barcelona e Alicante (desta vez o terreno havia sido limpo adequadamente) eles aterrissam em Rabat no Marrocos no final do mesmo dia. Ele retira seu capacete e seu uniforme de couro e usando um chapéu, com um lenço em uma das mãos e um buquê de flores na outra, se apresenta ao Marechal Liautey com seus papeis e planos de vôo e entrega o buquê de violetas de Toulouse ainda frescas à Senhora Liautey.
Com o sucesso desta nova tentativa e com o apoio do Marechal Lyautey, Pierre Latécoère negocia com o Governo em Paris o estabelecimento da linha e constituí a sociedade "Lignes aériennes Latécoère".
Com aviões fornecidos pela Arma francesa, 15 Bréguet, tipo 14 (300 ch), com motor Renault e com pilotos desmobilizados da Guerra: Daurat, Delrieu, Dombray, Vanier, Rodier...inicia-se a linha Toulouse-Rabat, serviço que se tornará semanal.
Em 1° de setembro de 1919 o piloto Didier Daurat inaugura a linha França-Marrocos. Ela leva os primeiros malotes do correio a bordo de um Bréguet 14, mais possantes que os Salmson utilizados até aquele momento.
Com o estabelecimento da linha aparecem outras dificuldades, não havia serviço meteorológico e nem controle por rádio.
Daurat, por suas qualidades, é nomeado diretor da linha e instala uma disciplina rigorosa, no entanto, faltava pagar o preço pela conquista. Em 1920 Rodier e Marty-Mahé desaparecem no mar, perto de Port-Vendres. Os pilotos Gathon e Benas morrem em um acidente próximo de Valência.
Em 1921 a linha faz sucesso por sua regularidade. Os horários são respeitados, mas os riscos continuam. Sagnot à Barcelona, Mérel e Garrigle à Gibraltar, Stichter próximo a Alicante, encontram a morte em acidentes aéreos.
Em 1922 apesar dos acidentes que persistem é realizado o reconhecimento da linha Casablanca-Rabat-Fès-Oran, logo após esta linha é estabelecida e se torna semanal. Com um acidente neste percurso, a linha é abandonada em beneficio do reconhecimento da rota em direção a Dacar, no Senegal.
Em 1923 é feito o reconhecimento da costa africana até Dacar e implantados campos de pouso em Agadir, Cabo Juby, Cisneros, Porto Etienne e Saint-Louis. Em 3 de maio é realizado o primeiro vôo Casablanca-Dacar por três aviões Bréguet 14 com Delrieu, Roig, Lefroit, Cueille, Bonnord e Hann. A linha é reconhecida de Toulouse à Dacar. Eles passam a utilizar rádios para a comunicação entre uma escala e outra.
A linha é estabelecida com muita dificuldade tanto no que diz respeito às condições técnicas dos aviões (pouca autonomia de vôo, fragilidade frente às intempéries) quanto à questão de passagem pelas possessões espanholas na África e ainda pelos territórios insubmissos à administração francesa.
O trecho entre Casablanca e Dacar sofria com os ataques de tribos mouras dissidentes das administrações francesa e espanhola que demandavam resgates pelos pilotos capturados após panes dos aviões no deserto, que eram freqüentes no início.
Em 1924 inicia na linha Toulouse-Dacar aquele que se tornaria uma lenda, Jean Mermoz.
Paralelamente à linha Toulouse-Dacar, em 1924 chega o momento de se fazer conhecer o projeto aos países da América do Sul. O Coronel Roig é enviado ao Brasil, ao Paraguai e à Argentina.
A travessia do Atlântico era feita por destróieres da Marinha francesa antes do aperfeiçoamento dos aviões que teve inicio a partir dos anos 30 com Mermoz.
Em dezembro de 1924 uma missão aérea da Latécoère chega ao Rio de Janeiro com três aviões Bréguet 14, A2, novos, com objetivos comerciais. Participam desta missão, entre outros, Roig, Lafay e Hamm. O objetivo era ligar o Rio de Janeiro à Buenos Aires por via aérea. Esta viagem já havia sido feita anteriormente pelo piloto brasileiro Edu Chaves, mas agora a questão era estabelecer uma linha regular.
Em 14 de janeiro de 1925 os aviões partem do Rio de Janeiro em uma missão de reconhecimento em direção ao sul, entre Rio e Buenos Aires, a bordo dos três Bréguet 14, com Roig, Vachet, Hamm, Lafay e três mecânicos, que aterrissam em São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas, Montevidéu e Buenos Aires (Palomar). O percurso é realizado com sucesso. A foto de Florianópolis apresentada acima é desta primeira viagem de reconhecimento.
Em Florianópolis, do que se depreende dos acontecimentos, a missão teria passado pela ilha em 14 de janeiro de 1925 (provavelmente no campo do Campeche), como pode ser visto na foto reproduzida acima. Desconhecemos a existência de outras fotografias que testemunhem a atuação da companhia em Florianópolis.
Esta parece ter sido a primeira de uma série de viagens que passaram pela ilha que segundo registros mostram a ocorrência de cerca de 70 pousos realizados entre os anos de 1927 e 1931.
Concomitantemente a missão em direção ao sul, a Latécoère empreendeu um vôo de reconhecimento em direção ao norte (Rio – Recife).
Em 22 de maio de 1926, Mermoz é capturado pelos mouros entre Agadir e Cabo July após uma aterrissagem forçada, ele é restituído após o pagamento de um resgate de 1000 pesetas.
Em outubro de 1926 surge um novo integrante na linha, que também entrará para história, como aviador, negociador e escritor, Antoine de Saint-Exupéry. Ele é designado ao setor sul e depois a Cabo July, como chefe da praça aérea.
Nesta época é colocado em serviço o Laté 17, que possuía cabine para os passageiros e para o correio. Antes disso, a correspondência era carregada em caixas alongadas dispostas nas asas.
Em abril de 1927 a sociedade “Lignes Aériennes Latécoère” é vendida quase na totalidade ao empresário Marcel Bouilloux-Lafont e passa a se chamar “Compagnie Générale Aéropostale”.
A Companhia Latécoère à Toulouse continua sua existência com a fabricação de aviões.
Em 16 de abril de 1928 é realizado o primeiro vôo noturno entre Rio e Buenos Aires por Mermoz.
Em outubro de 1929 chega a Buenos Aires Antoine de Saint-Exupéry, diretor da Aeroposta Argentina que empreende o estabelecimento de uma nova linha em direção ao sul da Patagônia e o Estreito de Magalhães.
Em 12 de maio de 1930 Mermoz realiza a primeira travessia aérea entre Saint-Louis (Senegal) e Natal a bordo de um Laté 28, com 130 kg de correspondências, com o acompanhamento de navios. É estabelecida pela primeira vez a linha Toulouse-Santiago do Chile por via exclusivamente aérea.
Em 1931, em decorrência da crise de 1929, Lafont perde o subsídio que recebia do governo francês e acaba por sofrer uma liquidação judicial. Em 1933 o que restava da companhia foi absorvido pela recém criada Air France.
Em 7 de dezembro de 1936 Mermoz desaparece a 800 km a sudoeste de Dacar, pilotando o avião Cruz do Sul.
Antoine de Saint-Exupéry desapareceu no Mediterrâneo em um vôo de reconhecimento durante a 2ª Guerra Mundial. Seu corpo nunca foi encontrado. Os destroços o avião P-38 Lightning que ele pilotava foram encontrados em 2002.
A historia da Companhia Latécoère/Aéropostale/AirFrance comporta muitos outros detalhes interessantes que não constam deste pequeno apontamento.
Este texto é baseado no livro de Jean Gerard Fleury (piloto e repórter) intitulado “L ́Atlantique Sud de L ́Aéropostale à Concorde”, edição de 1974. O livro é um álbum fotográfico constituído a partir de fotos tiradas pelos pilotos ou por amigos durante as escalas realizadas. Ele escreveu outros livros entre eles, La Ligne que traz inúmeros detalhes desta aventura.
Sites interessantes que falam do assunto:
Seguem algumas fotos do álbum:

Rio de Janeiro – janeiro de 1925. Preparação do vôo de reconhecimento Rio – Buenos Aires no Campo dos Afonsos, próximo do Rio.


Praia a 100 km de Porto Alegre – 15 de janeiro de 1925. Um problema no motor obriga Vachet a pousar na praia. Seus dois companheiros aterrissam ao seu lado e o avião é consertado.


Escala em Porto Alegre s/d. Da esquerda para a direita, temos: Gauthier, Vachet, Estival, Lafay, Chevalier e Hamm.



Bahia 1925. Em um vôo de reconhecimento do Rio em direção ao norte, o avião de Vachet, tendo a bordo Roig e Gauthier, capota após a decolagem da Bahia, os pilotos saem ilesos.



Hamm, com falta de sorte, depois de uma pane no motor, bate em rochedos em uma praia entre a Bahia e Pernambuco. (fevereiro de 1925?)




Rio de Janeiro – 23? de janeiro de 1925. Depois de sete dias em Buenos Aires, Lafay e Vachet voltam ao Rio onde aterrissam depois de 56 horas de viagem, vinte horas a mais que na ida, em razão das más condições meteorológicas.






Laté 25 – monoplano de motor Renault de 450 ch. Foi utilizado na linha Rio – Buenos Aires inaugurada em 15 de novembro de 1927: transportava o correio e cinco passageiros. Estes aviões foram fabricados em Toulouse na fabrica da Latécoère.




Natal? 1927. Desde março de 1927, Paul Vachet, terceiro a partir da esquerda, realiza o reconhecimento completo e detalhado da linha Buenos Aires – Natal.



Buenos Aires – Mermoz, janela do seu escritório em Buenos Aires.




Exupéry. Buenos Aires? Acolhida de Exupéry quando do retorno da missão de reconhecimento da linha em direção ao Estreito de Magalhães.




Rio de Janeiro - fevereiro de 1933. A tripulação do "Arc-en-Ciel" recebida por Edmundo de Oliveira (sentado, primeiro à esquerda), representante do Brasil.




Exupéry na África - 1927



Exupéry e Guillaumet – 1930. Na ocasião em que Exupéry havia ido buscar Guillaumet (ele havia se acidentado nos Andes) para leva-lo a Mendoza.

Veja a segunda parte desta matéria.

Tradução e adaptação: Marcio R. Sandoval
email: sterlingnumismatic@hotmail.com
© 2010 Marcio Rovere Sandoval

domingo, 2 de maio de 2010

O COLECIONADOR

                                                                                         © 2010 Marcio Rovere Sandoval





"Freud a écrit que l ́argent, faute d ́appartenir au monde des désirs de l ́enface, ne procure en soi aucun plaisir. Les collections (projets exigeants dans lesquels le collectionneur investi du temps, de l ́energie et de l ́argent) sont tout autre chose : il s ́agit ici d ́une pulsion qui trouve bien ses racines dans l ́enfance. Nous avons tous eu notre collection d ́enfant : pierres, coquillages, cartes postales ou timbres. Mais pour certains cette pulsion, loin de s ́épuiser à la fin de l ́enfance, explose à l ́âge adulte. Pedro Corrêa do Lago est de ceux-là. Le mot plaisir, que revient si souvent dans son texte d ́introduction à cet ouvrage, est bien révélateur à cet égard. La recherche du plaisir pousse à l ́exclusivité de la possession. Mais ce penchant peut en éveiller um autre, en un sens opposé : le plaisir de partager avec d ́autres les merveilles de sa propre collection." (in, Cinq Siècle sur Papier. Autographes et Manuscrits de la Collection Pedro Corrêa do Lago. Paris : Éditons de La Martinière, 2004, p. 7)

"Freud escreveu que o dinheiro, por não pertencer ao mundo da infância, não traz em si nenhum prazer. As coleções (projetos exigentes nos quais o colecionador investe tempo, energia e dinheiro) são uma outra coisa: Aqui se trata de uma impulsão que encontra suas raízes na infância. Todos nós tivemos uma coleção na infância: pedras, conchas, cartões postais ou selos. Mas para alguns esta impulsão, longe de terminar com o fim da infância, explode na vida adulta. Pedro Corrêa do Lago é um destes. A palavra prazer, que aparece continuamente no texto de introdução desta obra, é bem reveladora desta consideração. A procura do prazer tem como impulso exclusivo a possessão. Mas estando propenso a despertar um outro, em senso oposto: o prazer de dividir com os outros as maravilhas de sua própria coleção."

(Trecho do prefácio do livro "Cinq Siècle sur Papier" de Pedro Corrêa do Lago[1], por Carlo Ginzburg, que é professor nas Universidades de Pisa e da Califórnia (U.C.L.A.) e autor de várias obras traduzidas em treze línguas. É especialista em "micro-história", e um dos maiores historiadores contemporâneos.


Tradução e adaptação: Marcio R. Sandoval
email: sterlingnumismatic@hotmail.com




[1] Pedro Corrêa do Lago nasceu no Rio de Janeiro em 1958, vem de uma família de diplomatas, fez estudos de economia, é bibliófilo e colecionador. Aficionado, reuniu a partir de 1970, uma das maiores coleções mundiais de autógrafos e de manuscritos. Foi presidente da Biblioteca Nacional (2003-2005).