© 2013 Marcio Rovere Sandoval
Anverso
do specimen da cédula de 500 escudos
(P.138) datada de 13.1.1925 (176 X 107 mm ). No medalhão temos o escritor português
Camilo Castelo Branco (1825-1890), embaixo à direita vista da cidade do Porto.
Cédula impressa pela empresa Waterlow
& Sons de Londres. Em 04 de abril de 1933 decidiu-se pela sua não
emissão devido ao caso “Angola e Metrópole” que envolveu o Banco de Portugal,
Artur Virgílio Alves dos Reis e a firma impressora inglesa Waterlow & Sons.
Abaixo transcrevemos um
texto de Camilo Castelo Branco que faz parte de Eusébio Macário – História Natural e
Social de Uma Família nos Tempos dos Cabrais de 1879. Trata-se
de uma obra em que Camilo
parodia correntes literárias do Realismo e, especialmente, da sua variante, o
Naturalismo.” (wikipedia)
A morte do lobo
(...)
Uma noite de Novembro, caía neve e os
aspectos do céu, profundamente frio, tinham umas estrelas trémulas, lucilantes,
e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos
de prata fundida.
O padre vestia polainas de saragoça
assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas,
jaqueta de peles e uma carapuça alentejana, escarlate, que lhe abafava as
orelhas. Debaixo da lapela da véstia, resguardava a escorva da clavina, e
caminhava curvado, com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas
gargantas dos serros. Uivos
longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha e um terror
grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o
único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas.
Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um
outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu
o uivo ali perto, para lá da espinha do serro. Tirou a clavina do sovaco e,
lívido, com a sensação estranha do fígado despegado, meteu o dedo tremente,
automático, no gatilho. Fez um acto de contrição: provava quanto as religiões são
importantes, urgentes, nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo.
Esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no
horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra: parecia um bronze, um
emblema de sepulcro.
Ela quedou-se por largo espaço num
aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras,
com ares contemplativos de uma pacatez fleumática. Mediam trinta passos entre a
fera e o frade. Estava ao alcance da bala o lobo; mas o frade, caçador astuto,
manhoso, receava perder um dos tiros. Pôs-lhe a pontaria com um gesto de
espalhafato; dava gritos como quem açula cães:
─ Boca!
Pega! Cerca! Aí vai lobo!
Ecos respondiam e a fera, menos
versada na física dos sons reflexos, olhava crespa, espavorida, para o lado em
que percutiam os brados. Ergueu-se e desceu, mui de passo, com uns vagares
irónicos, com a cauda de rojo e o dorso eriçado, a ladeira da colina.
O padre via-a negrejar na linha
flexuosa do declive. Pensou retroceder, mas o lugarejo de Felícia estava mais
perto que a sua aldeia e, para aquele lado, latiam cães dum faro que adivinha o
lobo antes de lhe ouvir o uivo e o fariscam pela inquietação das reses nos
currais. Trepou afoito ao teso do outeiro. Ganhara ânimo: bebera uns tragos de
aguardente duma cabaça atada com o polvorinho no correão.
Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde,
se ele o não respeitasse como rei da criação, segundo
afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo olhou para baixo: não o
avistou. Carcavava-se um algar emaranhado de bravio espesso onde se embrenhara.
Estugando o passo, ganhou uma chã
ladeada de extensas leiras de feno, alvejantes como um estendal de lençóis; e,
quando olhava para trás, receoso, viu a alimária, a grandes passos, com a
cabeça alta, a atravessar a leira da esquerda, parecendo querer cortar-lhe o
passo na extrema do caminho que entestava com a aldeia.
O padre agachou-se, coseu-se com o
valo de urze e giestas que formavam o tapume das terras cultivadas, e, muito
derreado, arquejando com o dedo no gatilho e a fecharia rente da barba,
caminhou paralelo com o lobo, que o farejava de focinho anelante e as orelhas
fitas; e, assim que a fera passou de perfil em frente do tapigo, o rei da
criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a primeira bala, com
a destra pontaria de quem havia já matado águias com zagalotes.
O lobo, varado pela espádua até ao
coração, decaiu sobre um dos quadris, escabujou em roncos frementes, espargindo
flocos de neve, ergueu-se ainda, inteiriçado numa grande agonia, e morreu.
CAMILO
CASTELO BRANCO
Adaptação, tradução e comentários – Marcio R. Sandoval
© 2013 Marcio R. Sandoval