“AS TAMBOLADEIRAS” POR BELMONTE
Já tivemos a oportunidade de transcrever nesta página um dos textos do caricaturista Belmonte (Benedito Bastos Barreto – 1896 a 1947), intitulado “A Cama do Gonçalo”, constante no livro “No tempo dos Bandeirantes”. Nesta mesma obra temos outro texto que desperta a curiosidade, denominado “As Tamboladeiras”. O fato é que o autor em suas pesquisas nos testamentos e inventários seiscentistas notava continuamente a existência destes objetos. Belmonte se demanda o que vem a ser este estranho objeto que muitos possuíam e que sequer constava nos dicionários? Vamos conferir:
Como, nesta edição, se responde a uma pergunta que ficara de pé em edição anterior - A "tumbler" inglesa, a "tummler" germânica e um verbo muito conjugado - Um problema iconogrÁfico e etimolÓgico que se resolve.
Há, na História de todos os povos, episódios tão nublados de mistério que, mesmo enfrentados por pesquisadores pacientíssimos e eruditos, continuam cada vez mais nebulosos e, por isso mesmo, cada vez mais fascinantes.
A História do Brasil ainda insuficientemente estudada, com arquivos abarrotados de documentação inédita, está inçada de dubiedades e contradições, de legendas e fantasias que só têm servido, em não poucos casos, para intrigar os principiantes e atordoar os eruditos. Quanto à História de São Paulo - todos nós sabemos que a História de São Paulo constitui, pelo menos, a metade da História do Brasil - as falhas, as dubiedades e os erros são de tal monta que só a paciência dos pesquisadores poderá corrigir com o correr dos tempos, à medida que se fôr estudando e recompondo o vasto acervo documental inédito existente nos arquivos.
Mas, é evidente que a História não se faz apenas com episódios. Estes se desenrolam num meio social e geográfico cujo conhecimento exato os justifica pois, se é verdade que "o homem é um produto do meio em que vive", esse homem não pode ser compreendido sem que esse meio seja conhecido. Ou, em linguagem menos confusa: uma grande peça teatral seria apenas uma desolante estopada, se os atores se movessem num palco sem cenários, nem mobiliário.
Quando foi publicada a primeira edição deste livro, deixei sem solução um pequeno mistério que vinha intrigando, não só os historiadores, mas até mesmo os filólogos e lexicógrafos. O caso, evidentemente, não tinha importância de tal ordem que conseguisse abalar os alicerces da História. Mas era desses que, aparentemente destituídos de maior importância, constituem desafio atrevido aos historiadores e aos filólogos, com grave desprestígio para uns e outros.
A História do Brasil ainda insuficientemente estudada, com arquivos abarrotados de documentação inédita, está inçada de dubiedades e contradições, de legendas e fantasias que só têm servido, em não poucos casos, para intrigar os principiantes e atordoar os eruditos. Quanto à História de São Paulo - todos nós sabemos que a História de São Paulo constitui, pelo menos, a metade da História do Brasil - as falhas, as dubiedades e os erros são de tal monta que só a paciência dos pesquisadores poderá corrigir com o correr dos tempos, à medida que se fôr estudando e recompondo o vasto acervo documental inédito existente nos arquivos.
Mas, é evidente que a História não se faz apenas com episódios. Estes se desenrolam num meio social e geográfico cujo conhecimento exato os justifica pois, se é verdade que "o homem é um produto do meio em que vive", esse homem não pode ser compreendido sem que esse meio seja conhecido. Ou, em linguagem menos confusa: uma grande peça teatral seria apenas uma desolante estopada, se os atores se movessem num palco sem cenários, nem mobiliário.
Quando foi publicada a primeira edição deste livro, deixei sem solução um pequeno mistério que vinha intrigando, não só os historiadores, mas até mesmo os filólogos e lexicógrafos. O caso, evidentemente, não tinha importância de tal ordem que conseguisse abalar os alicerces da História. Mas era desses que, aparentemente destituídos de maior importância, constituem desafio atrevido aos historiadores e aos filólogos, com grave desprestígio para uns e outros.
Foi assim que, na primeira edição deste trabalho, estudando a casa do bandeirante, o seu mobiliário e os utensílios domésticos do seu uso, fiz uma referência às tamboladeiras - utensílios de prata largamente usados nos lares de Piratininga e encontradiços em grande cópia de inventários e testamentos. Essa referência, conservo-a integralmente nesta edição e o leitor, se passou por ela, há de ter notado que, a exemplo de Alcântara Machado [1], lancei uma aflitiva interrogação: que é Tamboladeira?
Ninguém o sabia. Ou, melhor: Cândido de Figueiredo e Aulete pretendiam sabê-lo, pois, serenamente, nos seus grandes léxicos, informavam - mas informavam errando, pois não é possível aceitar a esquisita definição com que ambos pretendem ilustrar-nos.
E os dicionaristas mais remotos, Bluteau, Viterbo, Frei Domingos e Morais, prudentemente se fecham em copas, não nos dando da Tamboladeira a mais vaga, a mais longínqua idéia, como se o malsinado utensílio nunca houvesse existido, nem essa esquisita palavra houvesse jamais sido pronunciada.
Publicado o livro, o "caso da tamboladeira" aguçou a curiosidade de não poucos espíritos que, como o meu, não queriam conformar-se com o fato de saber que os bandeirantes faziam largo uso de um utensílio que nós, homens decididos do "século da Luz", continuávamos a deixar na treva... Mas, como?
Seria fácil, então, nos conformarmos com o mistério, numa época em que até as assombrações deixaram de ser misteriosas? E como deixar sem identificação iconográfica e etimológica um utensílio tão largamente usado pelos bandeirantes?
O "caso" era fascinante e eu me afundei resolutamente nele, enquanto de vários lugares me chegavam cartas com idéias, sugestões, alvitres, pseudo-soluções que, na sua maioria, não passavam de tímidos "palpites", reveladores apenas de um admirável interesse pelo problema. O qual, apesar de tudo, continuava cada vez mais misterioso, como nova Esfinge na estrada de Tebas.
Felizmente, ninguém foi devorado.
Um dia, porém, o antiquário Almeida Santos que, fascinado pelo caso, também se emaranhava no cipoal das pesquisas, afirma-me que a vasilha quatrocentista inglesa chamada tumbler deveria ter alguma relação com o nosso problema.
Tinha. Pelo menos, tinha a semelhança prosódica, pois a sua pronúncia, "tâmblar", surgia, logo de início, como um argumento de força irresistível a fazer do seu indisfarçável parentesco com a tamboladeira ou a tambladeira. E mais: a tumbler era, como se sabe, uma vasilha usada pelos bebedores de vinho e caracterizava-se pelo fato de não ter pés. Quem bebia por ela era forçado a esvaziá-la toda para, só então, a pousar sobre a mesa, pois se assim não fosse feito, a vasilha não poderia ter eqüilíbrio e entornaria o líquido.
Ora, isso veio logo ao encontro do que eu andava desconfiado com o verbo espanhol "tambalear". Se a "tumbler" não pára em pé, por ter o fundo cônico ou arredondado, e se o verbo "tamblear" quer dizer "cambalear, mover-se de um lado para outro procurando eqüilíbrio", é evidente que a tamboladeira é exatamente uma tambaleadera, isto é, uma coisa que cambaleia.
E isto se afirma com maior solidez sabendo-se que to tumble, em inglês, significa tombar e que a tumbler, posta sobre a mesa, deseqüilibra-se, cambaleia e cai. Daí a razão de ser a tamboladeira posta sobre a mesa com a boca para baixo. Uma vez cheia de vinho, o bebedor era obrigado a esvaziá-la inteiramente, se não quisesse ficar com ela na mão o dia todo...
Ora, apesar de ser uma vasilha de tão largo uso na Europa, desde o século XII, não são muitas as referências que se encontram a respeito da tamboladeira, sendo ainda curioso observar que este nome não era comum na península ibérica. No seu belo livro "The Collecting of Antiques" [2], Ester Singleton, à pág. 119, faz-lhe apenas uma rápida alusão: "Beside these pieces there would be great flagons, standing-cups, mugs, tumblers, and enormous candlesticks". E as mesmas ligeiras referências se encontram em "English Plate Marks", de W. J. Cripps, e "Silversmith's Work" de Hungerford Pollen.
Todavia, a Enciclopédia Britanica, mais explícita, entra em detalhes, afirmando que a tumbler é "a plain cup or bowl widely expanded at the mouth and with a runded base, so that it could only be set down when empty" - (... com um fundo arredondado, só podendo ser assentada quando vazia).
E, indo mais a fundo nesse caso, voltei com mais uma achega, descobrindo na prataria alemã dos séculos XIV, XV e XVI, a ancestral saxônia da tamboladeira na tummler e na handtummler, que F. S. Meyer descreve como "certos vasos sem pé, que cambaleiam quando colocados na mesa e que devem ser esvaziados previamente para pô-los direitos". E afirma ainda o escritor alemão que tummler vem do velho taumeln (cambalear), embora, mais etimologicamente, se possa radicar aquele substantivo ao verbo tummler (rodopiar, caracolar).
É indiscutível, como se vê, a origem da tamboladeira na sua ancestral britânica tumbler ou na germânica tummler, ambas coincidindo perfeitamente com o verbo espanhol tambalear.
A handtummler alemã é, como o próprio nome o indica, a tamboladeira com um cabo, ou um pé, o que lhe dá um aspecto de sineta. E é desse tipo, com certeza, a "tamboladeira com seu pé" que se encontra no inventário do capitão Bento Pires Ribeiro, falecido em São Paulo em 1669. E não deixa de ser curioso assinalar que, assim como alhures havia tamboladeiras de cristal com pé de prata, em São Paulo se criou um novo tipo com... coco. É, pelo menos o que aparece no rol de avaliações dos bens deixados pelo cunhado de Fernão Dias: "um coco aberto ao buril com o bocal de prata e seu pé..."
Ainda nos inventários paulistas do seiscentismo vamos encontrar outros tipos de tamboladeiras, como aquela "de gomos" que outra não será senão da espécie a que se refere a Enciclopédia Britânica, em forma de laranja: ... and a more usual type has orange-shaped body...
As tamboladeiras com asa, de que se encontram alguns exemplares nos inventários seiscentistas, nada mais são do que variantes dos vasos gregos, principalmente dos chamados "vasos de Nicostenes" que, com os "diolas" à frente, se espalharam por todo o mundo.
Ninguém o sabia. Ou, melhor: Cândido de Figueiredo e Aulete pretendiam sabê-lo, pois, serenamente, nos seus grandes léxicos, informavam - mas informavam errando, pois não é possível aceitar a esquisita definição com que ambos pretendem ilustrar-nos.
E os dicionaristas mais remotos, Bluteau, Viterbo, Frei Domingos e Morais, prudentemente se fecham em copas, não nos dando da Tamboladeira a mais vaga, a mais longínqua idéia, como se o malsinado utensílio nunca houvesse existido, nem essa esquisita palavra houvesse jamais sido pronunciada.
Publicado o livro, o "caso da tamboladeira" aguçou a curiosidade de não poucos espíritos que, como o meu, não queriam conformar-se com o fato de saber que os bandeirantes faziam largo uso de um utensílio que nós, homens decididos do "século da Luz", continuávamos a deixar na treva... Mas, como?
Seria fácil, então, nos conformarmos com o mistério, numa época em que até as assombrações deixaram de ser misteriosas? E como deixar sem identificação iconográfica e etimológica um utensílio tão largamente usado pelos bandeirantes?
O "caso" era fascinante e eu me afundei resolutamente nele, enquanto de vários lugares me chegavam cartas com idéias, sugestões, alvitres, pseudo-soluções que, na sua maioria, não passavam de tímidos "palpites", reveladores apenas de um admirável interesse pelo problema. O qual, apesar de tudo, continuava cada vez mais misterioso, como nova Esfinge na estrada de Tebas.
Felizmente, ninguém foi devorado.
Um dia, porém, o antiquário Almeida Santos que, fascinado pelo caso, também se emaranhava no cipoal das pesquisas, afirma-me que a vasilha quatrocentista inglesa chamada tumbler deveria ter alguma relação com o nosso problema.
Tinha. Pelo menos, tinha a semelhança prosódica, pois a sua pronúncia, "tâmblar", surgia, logo de início, como um argumento de força irresistível a fazer do seu indisfarçável parentesco com a tamboladeira ou a tambladeira. E mais: a tumbler era, como se sabe, uma vasilha usada pelos bebedores de vinho e caracterizava-se pelo fato de não ter pés. Quem bebia por ela era forçado a esvaziá-la toda para, só então, a pousar sobre a mesa, pois se assim não fosse feito, a vasilha não poderia ter eqüilíbrio e entornaria o líquido.
Ora, isso veio logo ao encontro do que eu andava desconfiado com o verbo espanhol "tambalear". Se a "tumbler" não pára em pé, por ter o fundo cônico ou arredondado, e se o verbo "tamblear" quer dizer "cambalear, mover-se de um lado para outro procurando eqüilíbrio", é evidente que a tamboladeira é exatamente uma tambaleadera, isto é, uma coisa que cambaleia.
E isto se afirma com maior solidez sabendo-se que to tumble, em inglês, significa tombar e que a tumbler, posta sobre a mesa, deseqüilibra-se, cambaleia e cai. Daí a razão de ser a tamboladeira posta sobre a mesa com a boca para baixo. Uma vez cheia de vinho, o bebedor era obrigado a esvaziá-la inteiramente, se não quisesse ficar com ela na mão o dia todo...
Ora, apesar de ser uma vasilha de tão largo uso na Europa, desde o século XII, não são muitas as referências que se encontram a respeito da tamboladeira, sendo ainda curioso observar que este nome não era comum na península ibérica. No seu belo livro "The Collecting of Antiques" [2], Ester Singleton, à pág. 119, faz-lhe apenas uma rápida alusão: "Beside these pieces there would be great flagons, standing-cups, mugs, tumblers, and enormous candlesticks". E as mesmas ligeiras referências se encontram em "English Plate Marks", de W. J. Cripps, e "Silversmith's Work" de Hungerford Pollen.
Todavia, a Enciclopédia Britanica, mais explícita, entra em detalhes, afirmando que a tumbler é "a plain cup or bowl widely expanded at the mouth and with a runded base, so that it could only be set down when empty" - (... com um fundo arredondado, só podendo ser assentada quando vazia).
E, indo mais a fundo nesse caso, voltei com mais uma achega, descobrindo na prataria alemã dos séculos XIV, XV e XVI, a ancestral saxônia da tamboladeira na tummler e na handtummler, que F. S. Meyer descreve como "certos vasos sem pé, que cambaleiam quando colocados na mesa e que devem ser esvaziados previamente para pô-los direitos". E afirma ainda o escritor alemão que tummler vem do velho taumeln (cambalear), embora, mais etimologicamente, se possa radicar aquele substantivo ao verbo tummler (rodopiar, caracolar).
É indiscutível, como se vê, a origem da tamboladeira na sua ancestral britânica tumbler ou na germânica tummler, ambas coincidindo perfeitamente com o verbo espanhol tambalear.
A handtummler alemã é, como o próprio nome o indica, a tamboladeira com um cabo, ou um pé, o que lhe dá um aspecto de sineta. E é desse tipo, com certeza, a "tamboladeira com seu pé" que se encontra no inventário do capitão Bento Pires Ribeiro, falecido em São Paulo em 1669. E não deixa de ser curioso assinalar que, assim como alhures havia tamboladeiras de cristal com pé de prata, em São Paulo se criou um novo tipo com... coco. É, pelo menos o que aparece no rol de avaliações dos bens deixados pelo cunhado de Fernão Dias: "um coco aberto ao buril com o bocal de prata e seu pé..."
Ainda nos inventários paulistas do seiscentismo vamos encontrar outros tipos de tamboladeiras, como aquela "de gomos" que outra não será senão da espécie a que se refere a Enciclopédia Britânica, em forma de laranja: ... and a more usual type has orange-shaped body...
As tamboladeiras com asa, de que se encontram alguns exemplares nos inventários seiscentistas, nada mais são do que variantes dos vasos gregos, principalmente dos chamados "vasos de Nicostenes" que, com os "diolas" à frente, se espalharam por todo o mundo.
Vaso grego em forma de "Kalatho"
Concluindo: creio não haver mais sombra de dúvida sobre a identificação da tamboladeira do bandeirante, não só a respeito da sua iconografia como também da sua etimologia. Não parecia correto que historiadores, arqueólogos, mestres em pesquisas e professores de português, interrogados sobre o significado da desnorteante palavra, se limitassem a franzir a testa e ficar pensando.
Podemos dizer hoje, creio que com absoluta certeza, que tamboladeira era um copo de beber vinho, sem pés (ou com pé em ponta, servindo de cabo) e que, com a base em cone ou arredondada, como uma cuia, cambaleava e caía quando vazio. Era colocado sobre uma salva ou um prato, com a boca para baixo (do inglês "tumbler" e do espanhol "tambalear"). (N.E.: não só quando vazio, mas também quando cheio, desde que fosse largado pelo seu usuário...)
Podemos dizer hoje, creio que com absoluta certeza, que tamboladeira era um copo de beber vinho, sem pés (ou com pé em ponta, servindo de cabo) e que, com a base em cone ou arredondada, como uma cuia, cambaleava e caía quando vazio. Era colocado sobre uma salva ou um prato, com a boca para baixo (do inglês "tumbler" e do espanhol "tambalear"). (N.E.: não só quando vazio, mas também quando cheio, desde que fosse largado pelo seu usuário...)
Tamboladeira alemã de cristal (handtummler)existente no "Bayrisches Gewerbe-Museum" de Nürenberg
[2] The Macmillan Company, 1937, New York.
Obs.: O Livro “No tempo dos Bandeirantes” de Belmonte pode ser encontrado na íntegra (inclusive com as demais imagens do livro) no site Novo Milenio.