quarta-feira, 10 de setembro de 2008

HISTÓRIA - SÃO PAULO SETECENTISTA


A Cama do Gonçalo, por Belmonte


Retrato supositivo de Amador Bueno da Ribeira (Aclamado Rei de São Paulo em 1641), por Belmonte (Benedito Bastos Barreto – 1896 a 1947). Segue abaixo um texto deste mesmo autor constante do livro – No Tempo dos Bandeirantes ,que achamos muito interessante. Belmonte utilizou como fonte de inspiração as Atas da Câmara de São Paulo e recriou com um talento fora do comum, situações surpreendentes. Boa leitura.




UMA CONSEQUÊNCIA DA POBREZA DE MÓVEIS NA VILA. A CHEGADA DE UM OUVIDOR E A REQUISIçÃO DE UMA CAMA – A OBSTINAçÃO DE UM HOMEM NA DEFESA DO SEU DIREITO.


Quando se sabe, numa fria tarde de agosto de 1620, que o ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho virá a São Paulo passar a sua correição, assalta os "homens bons" da vila uma terrível, indisfarçável atrapalhação.
A visita de um ouvidor à vila do planalto não constitui, em verdade, episódio anormal e capaz, por si só de esfriar a espinha dos escrupulosos senhores do Conselho. A vinda desses austeros representantes de Sua Majestade, incumbidos de aplicar, na colônia, os capítulos da Ordenação, realiza-se de tempos a tempos e nunca , como desta vez, o caso toma aspecto de tão apreensiva singularidade.
Mas a questão é que, desta feita, à notícia de que o severo funcionário já anda pelas alturas do Cubatão e vai iniciar a subida da serra, comodamente refestelado na sua rede de abrolhos, os senhores do conselho vêem erguer-se, implacavelmente, este problema angustioso: onde alojar o homem?
Na casa da Câmara evidentemente. Mas, como na casa da Câmara não existem leitos, o problema se apresenta sobre outro aspecto: onde arranjar uma cama decente para o senhor ouvidor?
E é aqui, diante dessa aflitiva interrogação, que os atribulados camaristas franzem rugas pensativas na testa e, desesperadamente, dão tratos à bola.
Na Vila existem camas, como existem catres e redes. A Câmara pode, logo que o necessite, requisitar uma delas e colocá-la à disposição do doutor Amâncio Rebêlo Coelho. Mas as camas que existem na vila, são trastes de incrível mau gosto, detestáveis trambolhos feitos na terra, e tão incaracterísticas que dificilmente poderá alguém saber a diferença que existe entre um leito e um catre. E o ilustre ouvidor itinerante teria mesmo que repousar suas preciosas banhas numa cama de negros
[1] se, de repente, alguém não se lembrasse de qualquer coisa e não pronunciasse estas cinco palavras salvadoras:
A cama do Gonçalo Pires!
A cama de Gonçalo vai salvar a situação e não é difícil imaginar o que se terá passado daí por diante.
Concordes os oficiais da Câmara em que se deve requisitar o precioso móvel, por empréstimo ou aluguel, dirigem-se à casa do homem três vereadores. Batem à porta. São recebidos. Expõem o caso.
Mas, inexplicavelmente, após ouvir as razões que os homens da Câmara invocam para solicitar-lhe a cama, Gonçalo Pires se fecha numa negativa renitente e feroz:
- Vossas Mercês estão me propondo um absurdo! A cama é minha, comprei-a no Reino com meu rico dinheiro, é nela que durmo e não a empresto a ninguém!
- Mas, neste caso, arrisca um oficial, muito conciliador, nesse caso Vossa Mercê nos alugará o móvel...
Gonçalo treme de raiva.
- Não alugo nada! Não empresto, não alugo, não dou, não vendo! Não sou negociante de móveis e a cama não sai daqui! Não posso dormir no chão como meus "negros"! O senhor ouvidor que durma onde quiser, mas não na minha cama!
Parece inútil insistir. Gonçalo não se curva a nenhuma explicação, não quer ouvir nada, não transige, não cede. Os três oficiais fazem a única coisa possível de fazer-se em tão dramática conjuntura. Tomam os chapéus, saem, cavalgam as mulas e, cabisbaixos, em silêncio, lá se vão, rumo à casa do senhor juiz.
O juiz, posto a par da surpreendente cena em casa de Gonçalo não precisa abismar-se em longas conjeturas. Se Gonçalo se recusa a servir Sua Majestade, na respeitável pessoa do senhor ouvidor, deve ser tido como rebelde. Podem, pois, os senhores oficiais, de acordo com o artigo tanto da "Ordenação", requisitar a cama, usando de força. Podem se quiserem, meter o Gonçalo no xadrez. Podem até enforcá-lo. E esquartejá-lo. E...
Esse "crescendo" de penalidades parece aumentar ao infinito as culpas do rebelde. E acha-se que a simples requisição da cama é, até, mais uma graça do que um castigo imposto ao negregado Gonçalo. Razão de sobra para que não se discuta mais.
Oficiais da Câmara, com seis índios e homens armados, irão buscar a cama do Gonçalo.
Quando, no dia seguinte, Gonçalo Pires abre a porta e dá com a assustadora tropa, compreende tudo e corre para dentro. Os homens vão entrando. Invadem o quarto. O oficial, com boas palavras, ainda tenta uma conciliação.
Inútil! Gonçalo Pires está intratável, congesto e brada contra a violência. O oficial começa a perder a calma - coisa que Gonçalo já havia perdido há muito tempo - e cita parágrafos da Ordenação de Sua Majestade, capítulos de ordens dos corregedores, provisões dos ouvidores; fala em penas na cadeia, degredo na costa d´Africa, passeio até a forca da Tabatinguera... O senhor Gonçalo diante de tais perspectivas, não acha que será melhor emprestar ou alugar a cama, sem um apelo à violência, perfeitamente evitável?
Gonçalo não acha nada. Gonçalo não atende a nada. O que Gonçalo quer é que o deixem em paz com sua cama e vão-se embora.
Os oficiais entreolham-se. Não há outro remédio. Dois homens agarram o "rebelde", enquanto os índios desarmam a cama e vão levando-a, com seu sobrecéu, seus cobertores, seus lençóis, rumo à casa da Câmara onde, no dia seguinte , irá dar descanso ao corpo fatigado do senhor ouvidor Amâncio Rebêlo Coelho...
Passa-se um mês.
No dia 12 de setembro desse ano de 1620, realiza-se uma das sessões da Câmara e, entre outros assuntos, surge o atribulado caso da cama requisitada.
Gonçalo Pires continua furioso e, não tendo podido evitar a rumorosa apreensão, não quer mais receber o leito de volta, continuando a clamar contra a violência.
Os senhores conselheiros, por sua vez, não precisam mais do móvel, pois o senhor ouvidor já partiu para a Côrte. E é assim que, nessa sessão, toma a palavra o procurador Francisco Jorge para explicar que os oficiais da Câmara mandaram vir uma cama, colchão e cobertor e um lençol de pano de algodão usado e um travesseiro usado que foi tomado para o ouvidor geral, a qual estava da maneira que o tomaram de sua casa, de que deu fé o tabelião Simão Borges Cerqueira, que estava da própria maneira que o tomaram de sua casa, somente estar o lençol por lavar, e os oficiais mandaram ver a dita cama por dois homens juramentados que foram Belquior da Costa e Gaspar Manuel Salvago os quais disseram que estava a cama velha e suja... Salvago, todavia, afirma que a cama está no estado em que a tomaram.
Gonçalo Pires, contudo, feroz na defesa do seu direito, afirma que lhe estragaram o precioso móvel e nega-se a recebe-lo. A Câmara insiste em pagar o aluguel do leito. Gonçalo obstina-se em não receber. Ou lhe devolvem a cama, no estado em que a encontraram, ou então... ou então Gonçalo não sabe o que fazer. Não precisa de esmolas.
Os senhores do Conselho irritam-se. E, energicamente, exigem que Gonçalo compareça à Câmara, com pena de seis mil réis, para receber o dinheiro que Sua Majestade manda de aluguel de sua cama.
Mas Gonçalo não aparece na Câmara.
Expedem-se citações. Gonçalo não se mexe.
E, nisso, passa-se mais um mês.
Passa-se mais um mês e, certo dia, reunida a Câmara, o procurador faz entrar no recinto o alcaide Francisco Jorge para que este exponha à Casa o que tem havido com Gonçalo Pires. E o alcaide, após jurar, pondo a mão sobre um livro de Horas, deu fé que indo à casa do Gonçalo Pires fazer uma notificação por mandado dos ditos oficiais que mandavam ao dito Gonçalo viesse tomar entrega de uma cama que nesta casa do Conselho está, a qual cama foi tomada para serviço do ouvidor geral Amâncio Rebêlo Coelho, o dito Gonçalo Pires se lhe escondera, o que fazia a fim de se lhe não fazer a dita notificação e para não se lhe entregar a dita cama, fundado em sua malícia, ao que mandaram os ditos oficiais lhe fosse feita a terceira notificação e, quando não o acharam, notificaram a um vizinho seu mais chegado.
É de crer que, continuando Gonçalo a esconder-se para fugir à presença incômoda do alcaide, tenha este entregue a terceira notificação ao vizinho mais próximo. Mas...

Correm os dias. Escoam-se os meses. Passam os anos.
O vizinho de Gonçalo, com a casa abarrotada de notificações da Câmara, não sabe mais onde guardar a enxurrada de papéis que lhe invade a casa. E um belo dia, seis anos após o dia tenebroso em que arrebataram a cama do Gonçalo, justamente no dia 27 de fevereiro de 1627, reunidos os senhores vereadores em conselho, o escrivão Manuel da Cunha lança no livro de Atas este certificado:

"Sertifico eu mel. da cunha escrivão da comarca desta villa de são paullo en como hé verdade que eu notifiquei a gonçalo pires vihesse tomar sua cama por mandado dos ofisiais desta comarca, ho quall respondeo que lhe dessen como lha tomaram que então a receberia."

Seis anos de resistência não abalaram a incrível teimosia de Gonçalo Pires. Seis anos de luta com os Oficiais da Câmara, seis anos de negativas, de recusas e de intransigências, não alteraram a decisão que este homem surpreendente tomou, um dia, e que mantém de pé, inabalável como uma convicção, indestrutível como um dogma. Privado de sua cama, afagado com promessas e tentado com dinheiro, o espantoso Gonçalo é, em 1627, o que fora em 1620 - o homem que quer a sua cama no estado em que lha tomaram. Em verdade, Gonçalo não é mais um homem: é uma Vontade em ação.
Depois disso não se fala mais em Gonçalo Pires, nem em sua cama.
Gonçalo morre. E, talvez, é bem possível que, antecipando-se a Cambrone em Waterloo, tenha ele exclamado, ao exalar o último suspiro diante da última notificação:
Nunca! O velho Gonçalo morre mas não se rende!

(in, No Tempo dos Bandeirantes - por Belmonte, 4ª edição, Edições Melhoramentos, 1948, p.44 a 50).

Obs.: O livro apresenta ilustrações feitas pelo próprio autor, que não constam nesta transcrição.

Transcrição e atualização ortográfica por Márcio R. Sandoval.
Fevereiro de 2007.
[1] N.T. Esta passagem, como algumas outras, é infeliz, mas devemos considerar a época em que o texto foi escrito, década de 30/40.